Nos últimos dias, ao acompanhar o noticiário de Brasília sobre os trabalhos da CPI da Pandemia, me assustei um pouco com o rolo dos “supostos representantes de fabricantes de vacinas” invadindo o Ministério da Saúde no final da gestão do general Eduardo Pazuello. Isso não faz muito tempo não, pois refiro-me ao primeiro trimestre de 2021. Parece que foi lá atrás, né? Mas não foi.
A negociata, pelo que vem mostrando a Comissão Parlamentar de Inquérito, com depoimentos estarrecedores e farta quantidade de documentos, correu solta. Foi um tal de suposta propina de um dólar por dose pra lá, “comissionamento” pra cá, ONG Evangélica no meio do furdúncio, PM de Alfenas negociando vacina, militares do Ministério dando livre trânsito a esta patota toda, encontro em restaurante de shopping da Capital Federal regado a chopinho… É sempre bom ressaltar, neste contexto de “balcão de negócios ministerial”, que nenhuma fabricante de vacina contra a COVID no mundo, até agora, teve intermediários tratando de compra de doses. Pelo contrário, todos negaram possuir representantes, ou “representantes”.
E de pensar que, no ano passado, o laboratório norte-americano Pfizer, sem intermediários, procurou o Governo Federal várias vezes (fato provado em documentos de posse da CPI) para tentar vender imunizantes, sem respostas no tempo necessário. Se as vacinas tivessem sido compradas ainda em 2020, alguns dos mais de 439 mil brasileiros que perderam a vida por causa da doença poderiam ter tomado o imunizante logo, com boas chances de estarem vivos hoje.
Aí eu me lembrei da expressão “pilantropia” (medida que visa benefício próprio de alguns, mas que a princípio parece bacana e altruísta aos olhos da maioria). O termo era bastante citado pelo saudoso jornalista Carlos Tidei, com quem trabalhei na Folha de Vinhedo há alguns anos, quando algo que seria motivo de matéria parecia não cheirar bem. Todo o contexto das intermediações para tentar vender ao Governo 400 milhões de doses de vacinas que tem sido amplamente divulgado pela imprensa nos últimos dias (sem que os laboratórios admitam possuir representantes, vale a pena repetir) ou é pilantropia, picaretagem, mutreta, 171, ou realmente a gente está ficando maluco de vez. Os fatos mostram que os personagens surgidos do nada que transitam no Ministério da Saúde possuem todo jeitão de vendedores de terrenos no céu. Ou na lua. Pior: tem gente querendo tais terrenos, pagando por eles uma fortuna, com dinheiro público, e com vidas humanas sendo perdidas mediante atitudes de patifaria explícita.
Realmente o Brasil não pode ser compreendido por qualquer um. Mesmo quem vive aqui há anos está com dificuldades para processar o que vem sendo mostrado neste episódio. A coisa está feia e o cheiro de pilantropia ficou ainda mais forte, gerando uma fala do líder do Governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), durante sessão da CPI nesta quinta-feira (15). Disse o parlamentar emedebista, fervoroso defensor da gestão Bolsonaro: “Fiquei constrangido com as tratativas entre os integrantes do Ministério da Saúde e Cristiano Carvalho, representante da Davati. Eu quero aqui também manifestar o meu desconforto com os diálogos que foram mantidos entre os representantes da Davati e servidores públicos ou ex-servidores públicos, numa narrativa em que a gente constata a falta de credenciamento, de capacidade técnica, de habilidade técnica para que essa empresa Davati ou seus eventuais representantes pudessem tratar com o Governo brasileiro para uma eventual aquisição ou compra de vacinas”, emendou o líder do governo.
Está difícil defender o indefensável e não sentir cheiro de coisa podre no ar de Brasília. E tem mais: o CEO da Davati, Herman Cardenas, deu entrevista à Folha de S.Paulo esta semana dizendo que não possuía as 400 milhões de doses de vacinas contra a COVID citadas pelos vendedores de terrenos no espaço, o que reforça ainda mais a desconfiança concreta de picaretagem nas tratativas já citadas. Completou Cardenas: “A ideia era ser apenas um facilitador do negócio”. Facilitador de pilantropia, então?
Espero sinceramente que todos os envolvidos nesta chanchada de muito mau gosto da vida moderna e trágica do Brasil sejam devidamente apontados, responsabilizados e punidos. Se isso vai ocorrer, aí já é uma outra conversa. Vamos acreditar.
Só não podemos crer, nem aceitar, essa tal de pilantropia… Lembrando um trecho da música “Ideologia”, do genial Cazuza, faço uma pequena e pertinente adaptação: “Pilantropia, não quero uma pra viver”!
Paulo Ferro, jornalista
Foto: Pedro França/Agência Senado